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Transgredir os limites de quais histórias e temas podem ser considerados dignos de literatura é um dos muitos êxitos da obra de Annie Ernaux, que há mais de quatro décadas se dedica a escrever a própria vida, sempre atenta à dimensão social e política do que é individual.Nesta meditação investigativa escrita na forma de diário íntimo — e que compõe a coleção Raconter la vie [Narrar a vida] da editora francesa Seuil —, Ernaux volta sua atenção para o fenômeno dos grandes supermercados, espaço onipresente na vida moderna e domínio por excelência da mulher na sociedade patriarcal. Registrando suas visitas a um hipermercado dentro de um shopping perto de Paris ao longo dos meses, ela exercita o que considera um “modo impressionista de apreender coisas e pessoas”, isto é, “um livre registro das observações, sensações, para tentar capturar alguma coisa da vida que se desenrola ali”.Sem, portanto, mobilizar leituras teóricas, apenas por meio de seu incansável poder de observação, Ernaux se alinha aos grandes intérpretes da vida moderna e oferece uma reflexão inovadora a respeito de consumo, classe e desejo na sociedade contemporânea.Atenta tanto ao espaço que a circunda quanto ao tempo, outro tema recorrente em sua obra, ela ilumina aspectos pouco explorados da relação entre capitalismo e temporalidade: “neste lugar em que o tempo humano parece não existir mais, vencido pelo tempo das coisas, absorvido pela presença inerte das coisas, — cujo retorno cíclico, de acordo com os feriados e as estações do ano, é a única temporalidade perceptível —, tudo muda, na verdade, o tempo todo”.Aliando sensibilidade e pensamento crítico, a vencedora do prêmio Nobel de literatura de 2022 renova com este livro os projetos de Walter Benjamin e Georges Perec e traz uma visão original e inusitada sobre um espaço que pensávamos conhecer, convidando-nos a olhar com mais profundidade para a vida cotidiana e a decifrar o que ela diz sobre nós.